Dizem que lésbica não
sabe amar, né. Amar não. Namorar, mesmo. Dizem que a gente se joga de cabeça, beija,
transa, chora, diz que ama, tudo junto, de uma vez. Já ouvi quem dissesse que
mulher é bicho sentimental, e com outra mulher, então, só pode dar merda.
Pensei no estereótipo
enquanto encarava meu celular. Na tela, uma foto nossa; beira do lago Paranoá,
ela sorria de boca aberta e fechava os olhinhos. Eu beijava seu rosto,
segurando minha touca cinza, olhando para a câmera. A foto tem duas semanas, e
quando ela foi tirada, fazia duas semanas que estávamos namorando.
Aquele dia foi
perfeito, inclusive. Estava rolando um festival de artesanato no parque, desses
que reúnem toda a comunidade indie e hipster do Distrito Federal — o que pode
ser a receita para um evento irritante. Mas não foi, e a culpa foi dela. Bianca
tem esse poder de achar beleza onde eu nem imagino arte, sabe?, eu bem achei
que a guria iria comprar a feira inteira se não fosse fim de mês e ambas
estivéssemos quebradas. O mundo era só plano de fundo pra gente. Fizemos um
piquenique, dançamos, compramos colares de lua, vimos o sol se pôr e nos
embebedamos com vinho barato. Quando ela me beijava, eu sentia um plano cósmico
pairando sobre as nossas cabeças, ela sorria, eu respirava. “Nossa, Mari”, ela
dizia, continuava rindo, prendia meu cabelo atrás das minhas orelhas.
Me apaixonei pela
Bianca naquele dia.
Nos encontramos mais
uma vez desde então. Quase não conseguíamos ver uma a outra. Sendo ela
estudante de Ciências Biológicas na UnB e morando na Asa Norte, eu pegava metrô
de Taguatinga pro cursinho pré-vestibular. Nossas agendas divergiam de mais
para duas pessoas que moravam tão longe uma da outra — e, aí, sobravam os fins
de semana. Não que isso fosse um problema; como nos conhecemos por intermédio
de um aplicativo do celular, nosso relacionamento era, em sua grande maioria,
virtual.
Mas não nos últimos
três dias.
E, olhando para aquela
foto, nem percebi que uma lágrima escorria do cantinho do meu olho. Eu bem
entendo que o fim de semestre, sobretudo em uma universidade federal, é osso, é
difícil mesmo. Sei que ela não tem ânimo nem tempo de ficar pendurada no
celular o tempo inteiro.
Mas, sinceramente, nem
eu.
E ainda assim, não
consigo parar de checar as notificações a cada cinco minutos.
Acaba que o sentimento
bom que tinha dentro de mim havia sido inteiro substituído pelo medo. Desde o
primeiro gelo, eu não conseguia parar de reviver todos os nossos encontros e
experiências e conversas pelo WhatsApp, pensando no que diabos eu podia ter
feito para que ela me ignorasse assim. Pensando que, porra, se ela está me
dando gelo, deve ser porque quer terminar comigo.
E o estereótipo volta à
minha cabeça.
Talvez eu,
simplesmente, esteja indo rápido demais. Ou pensando coisas inexistentes. Talvez
ela precise de um tempo para se acostumar com o sentimento de estar se
apaixonando por mim; Deus sabe lá o que a ex-namorada dela pode ter feito.
Talvez ela tenha
enjoado de mim.
E esse tipo de
pensamento me dá mais nojo de mim mesma do que os que me invadiam quando eu, de
fato, estava apaixonadinha pela Bianca. Quando ela não saía da droga do meu
pensamento. Quando quase toda coisa que eu via tinha relação a ela. Ou quando,
antes de me apaixonar, eu morria de medo de estar me entregando demais — porque
não queria assustá-la, porque não queria me quebrar a toa.
Eu sei que tô me
quebrando aos poucos a cada hora sem uma mensagem dela.
Pensei em ligar de uma
vez e acabar com isso. Era sábado à tarde, ela não tinha aula. Não tinha
motivos para não me atender.
Limpei o rosto com os
dedos, puxei a respiração à força. Cliquei no nome dela. Esperei chamar.
— Alô? — escutar a voz
dela veio com efeito entorpecente que geralmente me causa, mas, dessa vez,
trouxe medo com ele.
— Oi, Bia — eu disse. —
Tá bem? Você parou de me responder do nada.
Houve certo silêncio do
outro lado da linha.
— Mariana — escutei. —
Não, não, eu tô bem. Só muito cansada.
— Ah... mas... tipo,
você parou de me responder.
— Ué, você sabe que eu
tenho que eu tô em final de semestre. Não tô ficando muito no celular.
A rudez dela me veio
como um soco no estômago. Precisei de um segundo para recuperar o ar.
— Não, eu sei, eu sei.
Desculpa — respondi, completamente sem jeito.
— Relaxa — ela
suspirou.
E a linha ficou
completamente silenciosa. Com tanta coisa que eu tinha para dizer, é
inacreditável que as palavras fiquem tão presas, sufocando minha garganta.
— Não tô a fim de
incomodar, Bianca — decidi falar. Meu peito batia tão forte no peito que doía.
— É só que eu realmente tô com a sensação de que você tá me ignorando. Você
ficou estranha do nada, sabe? E eu só tô dizendo isso porque você sabe que eu
sou sincera. Eu não gosto de coisas mal resolvidas, então, sei lá, tá
acontecendo alguma coisa?
— Ai, Mari, não começa
o drama, por favor — disse, pejorativamente.
— Tá acontecendo ou
não?! — levantei meu tom de voz, irritando-me.
— Não sei! — ela gritou
de volta. — Porra, Mariana, não sei, quer me deixar em paz?! Eu tô com muita
coisa na cabeça, cara! Eu não posso lidar com você e a sua fragilidade o tempo
todo! — a voz dela explodiu em mim. Percebi que, talvez, ela estivesse tão
cheia de sentimento e palavra quanto eu.
Mas isso não impediu
minha raiva. Ou confusão.
— O quê?! — perguntei,
um oitavo acima do tom da minha voz.
— Eu já sou ferrada! Eu
não consigo, eu não preciso ser responsável pela sua felicidade, Mariana! — ela
jogava tudo em cima de mim, sem conseguir parar. — Eu queria evitar esse tipo
de drama. Era justamente isso que eu queria evitar.
Nem percebi que as
lágrimas desciam pela minha bochecha.
— Não te obriguei a
lidar com a minha personalidade frágil
e dramática, porra. Você se envolveu
comigo porque quis.
— Argh, meu Deus! — ela
grunhiu. — Eu não tô dizendo que o problema é você, Mariana, eu que não tô
dando conta, entende? Eu que não sei se posso te oferecer o que você precisa!
— Então você quer
terminar?! Porra, se você quer terminar, diz! Não fica jogando indireta e me
ignorando! Você quer terminar, Bianca?!
— Puta que pariu, Mariana,
por favor...
— Responde! Você quer
terminar?
— Eu quero! — ela
gritou. — Eu quero.
O meu choro ficou
audível. Da linha dela, eu só ouvia a respiração desregular. Lembrei
imediatamente de quando, olhando nos meus olhos, ela disse que estava se
apaixonando por mim e do quanto tinha medo disso. “A segurança atribuída a uma
pessoa geralmente é ilusão”. Menina machucada. E eu, idiota, que me prometi
beijar e curar todas as dores dela.
Não sei nem se a
conheci de verdade. Porque, beijando-a, eu disse que estava pronta para ela, se
ela se permitisse.
Foi ela que começou a
dizer para as pessoas que éramos namoradas.
Ela que me chamou de
amor pela primeira vez.
Ela marcou o primeiro
encontro.
Ela me beijou primeiro.
Tão irônico que, para
uma pessoa que não conseguia me oferecer o que eu precisava, ela se esforçou
muito para me fazer apaixonar.
— Tudo bem — respondi
no que me pareceu uma hora depois. — Tudo bem. Vou te deixar em paz, então.
Volte pros seus estudos ou sei lá o que você estava fazendo. — Eu não conseguia
esconder o ressentimento. Queria dizer a ela que eu nunca quis ter levado drama
para a sua vida complicada. Que, tudo bem terminar, mas se fosse assim, que ela
fizesse o favor de sumir da minha vida de vez. Queria xingá-la e abraçá-la ao
mesmo tempo. E ainda não conseguia parar de chorar. — Sem mais drama, então.
Tudo de bom pra você.
Desliguei o telefone
antes de ter a chance de ouvir uma resposta.
Que coração preguiçoso, esse seu.
Fica esperando sem nunca insistir.
Você parece uma sensação, é bom sentir.
Mas, deixa... Às vezes tenho paz.
Deixa. Respire devagar.
Deixa... Talvez seja melhor...
Deixa.
Às vezes erro o tom.