27 de jun. de 2014

deixa







Dizem que lésbica não sabe amar, né. Amar não. Namorar, mesmo. Dizem que a gente se joga de cabeça, beija, transa, chora, diz que ama, tudo junto, de uma vez. Já ouvi quem dissesse que mulher é bicho sentimental, e com outra mulher, então, só pode dar merda.
Pensei no estereótipo enquanto encarava meu celular. Na tela, uma foto nossa; beira do lago Paranoá, ela sorria de boca aberta e fechava os olhinhos. Eu beijava seu rosto, segurando minha touca cinza, olhando para a câmera. A foto tem duas semanas, e quando ela foi tirada, fazia duas semanas que estávamos namorando.
Aquele dia foi perfeito, inclusive. Estava rolando um festival de artesanato no parque, desses que reúnem toda a comunidade indie e hipster do Distrito Federal — o que pode ser a receita para um evento irritante. Mas não foi, e a culpa foi dela. Bianca tem esse poder de achar beleza onde eu nem imagino arte, sabe?, eu bem achei que a guria iria comprar a feira inteira se não fosse fim de mês e ambas estivéssemos quebradas. O mundo era só plano de fundo pra gente. Fizemos um piquenique, dançamos, compramos colares de lua, vimos o sol se pôr e nos embebedamos com vinho barato. Quando ela me beijava, eu sentia um plano cósmico pairando sobre as nossas cabeças, ela sorria, eu respirava. “Nossa, Mari”, ela dizia, continuava rindo, prendia meu cabelo atrás das minhas orelhas.
Me apaixonei pela Bianca naquele dia.
Nos encontramos mais uma vez desde então. Quase não conseguíamos ver uma a outra. Sendo ela estudante de Ciências Biológicas na UnB e morando na Asa Norte, eu pegava metrô de Taguatinga pro cursinho pré-vestibular. Nossas agendas divergiam de mais para duas pessoas que moravam tão longe uma da outra — e, aí, sobravam os fins de semana. Não que isso fosse um problema; como nos conhecemos por intermédio de um aplicativo do celular, nosso relacionamento era, em sua grande maioria, virtual.
Mas não nos últimos três dias.
E, olhando para aquela foto, nem percebi que uma lágrima escorria do cantinho do meu olho. Eu bem entendo que o fim de semestre, sobretudo em uma universidade federal, é osso, é difícil mesmo. Sei que ela não tem ânimo nem tempo de ficar pendurada no celular o tempo inteiro.
Mas, sinceramente, nem eu.
E ainda assim, não consigo parar de checar as notificações a cada cinco minutos.
Acaba que o sentimento bom que tinha dentro de mim havia sido inteiro substituído pelo medo. Desde o primeiro gelo, eu não conseguia parar de reviver todos os nossos encontros e experiências e conversas pelo WhatsApp, pensando no que diabos eu podia ter feito para que ela me ignorasse assim. Pensando que, porra, se ela está me dando gelo, deve ser porque quer terminar comigo.
E o estereótipo volta à minha cabeça.
Talvez eu, simplesmente, esteja indo rápido demais. Ou pensando coisas inexistentes. Talvez ela precise de um tempo para se acostumar com o sentimento de estar se apaixonando por mim; Deus sabe lá o que a ex-namorada dela pode ter feito.
Talvez ela tenha enjoado de mim.
E esse tipo de pensamento me dá mais nojo de mim mesma do que os que me invadiam quando eu, de fato, estava apaixonadinha pela Bianca. Quando ela não saía da droga do meu pensamento. Quando quase toda coisa que eu via tinha relação a ela. Ou quando, antes de me apaixonar, eu morria de medo de estar me entregando demais — porque não queria assustá-la, porque não queria me quebrar a toa.
Eu sei que tô me quebrando aos poucos a cada hora sem uma mensagem dela.
Pensei em ligar de uma vez e acabar com isso. Era sábado à tarde, ela não tinha aula. Não tinha motivos para não me atender.
Limpei o rosto com os dedos, puxei a respiração à força. Cliquei no nome dela. Esperei chamar.
— Alô? — escutar a voz dela veio com efeito entorpecente que geralmente me causa, mas, dessa vez, trouxe medo com ele.
— Oi, Bia — eu disse. — Tá bem? Você parou de me responder do nada.
Houve certo silêncio do outro lado da linha.
— Mariana — escutei. — Não, não, eu tô bem. Só muito cansada.
— Ah... mas... tipo, você parou de me responder.
— Ué, você sabe que eu tenho que eu tô em final de semestre. Não tô ficando muito no celular.
A rudez dela me veio como um soco no estômago. Precisei de um segundo para recuperar o ar.
— Não, eu sei, eu sei. Desculpa — respondi, completamente sem jeito.
— Relaxa — ela suspirou.
E a linha ficou completamente silenciosa. Com tanta coisa que eu tinha para dizer, é inacreditável que as palavras fiquem tão presas, sufocando minha garganta.
— Não tô a fim de incomodar, Bianca — decidi falar. Meu peito batia tão forte no peito que doía. — É só que eu realmente tô com a sensação de que você tá me ignorando. Você ficou estranha do nada, sabe? E eu só tô dizendo isso porque você sabe que eu sou sincera. Eu não gosto de coisas mal resolvidas, então, sei lá, tá acontecendo alguma coisa?
— Ai, Mari, não começa o drama, por favor — disse, pejorativamente.
— Tá acontecendo ou não?! — levantei meu tom de voz, irritando-me.
— Não sei! — ela gritou de volta. — Porra, Mariana, não sei, quer me deixar em paz?! Eu tô com muita coisa na cabeça, cara! Eu não posso lidar com você e a sua fragilidade o tempo todo! — a voz dela explodiu em mim. Percebi que, talvez, ela estivesse tão cheia de sentimento e palavra quanto eu.
Mas isso não impediu minha raiva. Ou confusão.
— O quê?! — perguntei, um oitavo acima do tom da minha voz.
— Eu já sou ferrada! Eu não consigo, eu não preciso ser responsável pela sua felicidade, Mariana! — ela jogava tudo em cima de mim, sem conseguir parar. — Eu queria evitar esse tipo de drama. Era justamente isso que eu queria evitar.
Nem percebi que as lágrimas desciam pela minha bochecha.
— Não te obriguei a lidar com a minha personalidade frágil e dramática, porra. Você se envolveu comigo porque quis.
— Argh, meu Deus! — ela grunhiu. — Eu não tô dizendo que o problema é você, Mariana, eu que não tô dando conta, entende? Eu que não sei se posso te oferecer o que você precisa!
— Então você quer terminar?! Porra, se você quer terminar, diz! Não fica jogando indireta e me ignorando! Você quer terminar, Bianca?!
— Puta que pariu, Mariana, por favor...
— Responde! Você quer terminar?
— Eu quero! — ela gritou. — Eu quero.
O meu choro ficou audível. Da linha dela, eu só ouvia a respiração desregular. Lembrei imediatamente de quando, olhando nos meus olhos, ela disse que estava se apaixonando por mim e do quanto tinha medo disso. “A segurança atribuída a uma pessoa geralmente é ilusão”. Menina machucada. E eu, idiota, que me prometi beijar e curar todas as dores dela.
Não sei nem se a conheci de verdade. Porque, beijando-a, eu disse que estava pronta para ela, se ela se permitisse.
Foi ela que começou a dizer para as pessoas que éramos namoradas.
Ela que me chamou de amor pela primeira vez.
Ela marcou o primeiro encontro.
Ela me beijou primeiro.
Tão irônico que, para uma pessoa que não conseguia me oferecer o que eu precisava, ela se esforçou muito para me fazer apaixonar.
— Tudo bem — respondi no que me pareceu uma hora depois. — Tudo bem. Vou te deixar em paz, então. Volte pros seus estudos ou sei lá o que você estava fazendo. — Eu não conseguia esconder o ressentimento. Queria dizer a ela que eu nunca quis ter levado drama para a sua vida complicada. Que, tudo bem terminar, mas se fosse assim, que ela fizesse o favor de sumir da minha vida de vez. Queria xingá-la e abraçá-la ao mesmo tempo. E ainda não conseguia parar de chorar. — Sem mais drama, então. Tudo de bom pra você.
Desliguei o telefone antes de ter a chance de ouvir uma resposta.

Que coração preguiçoso, esse seu.
Fica esperando sem nunca insistir.
Você parece uma sensação, é bom sentir.
Mas, deixa... Às vezes tenho paz.
Deixa. Respire devagar.
Deixa... Talvez seja melhor...
Deixa.
Às vezes erro o tom.


25 de jun. de 2014

ser

Para descontrair.
(Por que eu iria querer ser sua amiga de qualquer jeito? Sua vadia lésbica de cabelo cacheado.)



Eu sempre tive cabelo cacheado. E sempre senti atração por meninas.
Quando criança, eu não sabia. Eu brincava com meus primos, de cabelo liso escorrido, mas para mim eles não passavam de outros seres humanos da minha idade. E, para ser bem honesta, eu achava o amor uma coisa muito bonita, porque estava concebido no fundo da minha cabeça que era por causa dele que as melhores histórias eram contadas. Vide as novelas da minha mãe e os contos de fada.
Não demorou muito, entretanto, para eu notar que era errado. Meus primos tinham namoradinhas e, eu, como menina, deveria ter namoradinhos. Afugentava qualquer pensamento que me vinha ao ver uma mulher bonita na tevê; ué, eu era menina. Meninas ficam com meninos. Simples assim.
E eu ainda tinha esse cabelo. Que, percebi, não era certo também. As meninas bonitinhas tinham cabelos lisos. Isso ficava bastante claro quando meu tio, adolescente babaca que era na época, me zoava até me fazer chorar. Quando, na escola, as meninas mais graciosas exibiam suas madeixas lisinhas. Quando eu comecei a notar um padrão que abrangia o conjunto das pessoas atraentes, e percebi que não me encaixava nele.
Então, eu fiz de tudo para esconder minhas coisas erradas.
Prendi o cabelo em um rabo de cavalo modesto durante toda a minha infância. 
Nunca falei com minha paixão platônica da terceira série. 
Usei chapinha, selagem, química capilar de todas as formas.
Beijei vários meninos. Não por sentir qualquer coisa, mas só para provar que eu atraía o sexo oposto. 
Tentei de tudo; e nada adiantava. No fim, as coisas voltavam. Meu cabelo, por exemplo, era só chover, era só molhar, e ele voltava. Ele estava lá; uma lembrança consistente de que eu não me encaixava, de que eu não estava certa em ter nascido daquele jeito.
Eu queria que ele fosse embora e desse lugar ao cabelo liso da minha família paterna.
Eu queria que inventassem um produto milagroso que mudasse tudo.
E, então, pouco mais de um ano atrás, descobri que não queria mais. Porque, ora, eu sempre tive cabelo cacheado. Sempre terei. E, além disso, havia um monte de meninas na internet que também sempre tiveram cabelos cacheados e que eram muito felizes com isso. Por que não eu? Por que a obsessão em me mudar só pra seguir um padrão? Só pra ser igual?
Descobri também que não queria mais mentir, nem pra mim, nem pra ninguém. Porque, depois de todo o medo de que o mundo caísse sobre as minhas costas por ser errada, percebi que a atração que eu sentia era tão certa. Que fazia tanto sentido que eu ficasse com meninas, porque era sincero, era normal para mim. Muito mais do que já foi com qualquer garoto. 
A aceitação caiu em mim limpa como uma onda e, nossa, levou muita sujeira da minha vida. Todos os traumas, as neuras, as preocupações estéticas descabidas. Levou embora a criancinha de baixa auto-estima que não conseguia olhar nos olhos de ninguém. Lavou minha alma, trouxe um sorriso mais pleno pro meu rosto. Levou embora os produtos químicos e a prancha de cerâmica. Levou embora a possibilidade de maus relacionamentos. Me limpou tão bem a ponto de me fazer amar o que antes eu detestava e ignorava em mim.
Ter aceitado meus cachinhos foi tão libertador quanto ter aceitado minha lesbianidade. São duas coisas que não mudam a minha essência; e sim, fazem parte dela. Sou tão cacheada quanto sou gay. E sendo assim, sou feliz.